quinta-feira, 29 de julho de 2010

UMA PEQUENA OBRA-PRIMA

ESTADO DE MINAS / por Arthur G. Couto Duarte (27/07/2010)
Mesmo que seus integrantes tenham deliberadamente optado por técnicas de gravação ao feitio lo-fi tão em voga entre as bandas "mudernas", a sonoridade do duo californiano Girls lembra – e muito – a exuberância psicodélica de artistas da era clássica do rock, como Kaleidoscope, The Beach Boys, Donovan Leitch e Tyrannosaurus Rex. Em seu CD de estreia, simplesmente denominado Album (selo True Panther Sounds, distribuído no Brasil pelo Lab 344), os músicos Christopher Owens e JR White tocaram praticamente todos os instrumentos, assinaram os arranjos e arregimentaram a produção, consumando assim um monumental triunfo do velho "do it yourself". Anjos perdidos de um universo tomado por pranchas de surfe, substâncias estupefacientes e loções bronzeadoras, Owens e White se elevaram do submundo da sua nativa San Francisco para a fama global da noite para o dia. Criado no seio da controversa comunidade mística-hippie Children of God ("os meninos de Deus"), Owens viu o irmão mais velho morrer quando criança porque a "Família" – como o grupo pseudor-religioso hoje prefere se intitular – jamais acreditou em atenção médica. Depois de fugir do grupo aos 16 anos, passou a viver nas ruas como um maltrapilho punk, até que um milionário local o adotou. Do encontro posterior com White surgiria o beatífico Girls. Lançado lá fora em setembro de 2009, Girls chega até nós ostentando as preciosas faixas-bônus Solitude e Life in San Francisco. Como as demais canções do disco, elas se mostram banhadas por uma beleza tristonha de dimensões épicas. Ainda que muito daquilo que ajudou a alavancar o estouro do grupo se deva à própria história de seus integrantes, ninguém em sã consciência poderá negar a força devastadora de temas como Lust for life, Summertime, Morning light e Ghost mouth.  Na voz soluçante de Owens, personagens destroçados por paixões de reverberações quase patológicas são expostos sem pudores. Nada lá, no entanto, resvala para a laceração emo, vide os versos "you've been a bitch/ I've been an ass/ I don't wanna point the finger/ I Just know I don't like this/ I don't wanna do this" da pungente Laura. Nos quase sete minutos da arrepiante Hellhole ratrace, guitarras twangy amparadas por uma batida seca que ressoa contra os tímpanos como um martelo evocam os delírios junkie do neo-noisy-ácido The Jesus & Mary Chain. Ao final, Album consegue comprimir aquilo que de melhor o rock já nos deu, em termos de transcendência lisérgica e lirismo visceral. Uma pequena obra-prima que provavelmente jamais aspirou à perfeição, mas cuja beleza e elegância fortuitas se mostram extraordinariamente distantes da produção pop atual.

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